HARRIS, Douglas C. Condominium government and the right to live in the City. Canadian Journal of Law and Society, Vancouver, v. 34, n. 3, p. 371-392, 2019.
Escrito a partir dos documentos do processo judicial envolvendo os proprietários residenciais do condomínio "Carral Station" e o dono da farmácia Omnicare em Vancouver, Canadá; o artigo busca entender o papel do condomínio como um ente com poderes "governamentais" que afetam não só os proprietários. moradores e comerciantes, como também a população do seu entorno e, até mesmo, o fenômeno da gentrificação, da revitalização de áreas das cidades e como essa estrutura modifica e modela quem são as pessoas que têm o direito de morar e se locomover na cidade.
O artigo é dividido em cinco grandes tópicos, sendo: O condomínio como quarto poder governamental; Observação "in loco" do lugar; O caso Omnicare x Carral Station (The owners); O fenômeno da exclusão no Carral Station; Privatização, governo democrático e a cidade.
A grande novidade do caso apresentado é que os condôminos-proprietários da parte residencial foram a juízo contra os donos da farmácia existe em um lote comercial do condomínio, pelo comportamento dos clientes do estabelecimento na calçada em frente ao condomínio. O autor reforça o foco do estudo sobre o condomínio como entidade governamental com status de criar e aplicar regras em territórios definidos e que esse status de quarto poder torna-se o local sobre a luta acerca do direito de ocupação da cidade.
Na sequência, o autor apresenta dados estatísticos que demonstram o crescimento da ocupação pelos condomínios, seja residencial, comercial ou mistos tanto em Vancouver como em Toronto (bem como no Canadá em geral).
Na segunda parte do artigo o autor apresenta, de modo descrito e através dos projetos legais a disposição da farmácia no edifício, as demais salas comerciais do empreendimento, além de pontuar a situação atual no local, como os avisos na porta da farmácia, a ocupação de um edifício próximo, inclusive apontando sobre o cercamento de uma determinada área próxima, fato incomum na paisagem urbana de Vancouver.
A seguir apresenta as origens das divergências desde o início dos anos 2000, entre os proprietários da parte residencial do condomínio e a farmácia. O caso chega à Corte Superior quando a questão trata de reconhecer que um condomínio não tem o mesmo status jurídico da municipalidade e, portanto, não pode ser a ele aplicada a "Carta de Liberdades e Direitos Humanos" da província de Quebec.
O conflito entre os proprietários do edifício Carral Station ocorre no contexto de um longo debate que vem se estendendo por décadas na cidade de Vancouver sobre ocupação da cidade e direitos de vizinhança. Ao final do tópico, é feita a ressalva sobre a necessidade da sociedade manter-se atenta sobre esse fatiamento do espaço urbano em condomínios, com sua própria interpretação e autoridade normativa, uma vez que tais autoridades acabam também atuando sobre a cidade como um todo, afetando o convívio e a ocupação de demais áreas públicas.
O regime estatutário dos condomínios facilita o fenômeno da delegação pública do poder de governar de acordo com Cohen, ocorrendo uma delegação de soberania. O autor segue chamando a atenção sobre os conceitos de Cohen sobre o poder que as prefeituras e o distrito de Vancouver acabam concedendo aos condomínios e como esse poder, territorialmente delimitado, acaba criando regras mas, por outro lado, não se encontra responsabilizado pela Carta de Direitos Humanos e Liberdades de Quebec, diferente do que ocorre com a municipalidade.
Dessa forma, segundo o autor, as liberdades dadas aos condomínios para criar regras, afetando cidadãos não condôminos inclusive e não estando sujeitos à Carta, faz com que os conflitos sobre quem determina que pessoas têm o direito de viver na cidade cresçam e se tornem cada vez mais complexos. Diante do detalhado, o autor considera de extrema importância que as autoridades revejam com atenção às leis e normas referentes à criação de condomínios e seus estatutos na Província de Quebec.
Trata-se de um artigo na modalidade estudo de caso, cujo autor é um professor de História do Direito com vários estudos que abordam a questão do direito à cidade e as políticas públicas da província de Vancouver acerca da ocupação do espaço urbano. Da leitura do texto foi possível inferir que a questão central objeto do estudo foi como a governança condominial afeta o espaço urbano no seu entorno, bem como propor um debate acerca de quem são realmente os destinatários das regras condominiais
Algumas questões, que foram colocadas ao longo da reunião do GPDS na qual se debateu o referido artigo, podem gerar a reflexão também no leitor:
A forma de governo nos condomínios é realmente democrática?
Qual o micro e o macro impacto da "jurisdição" condominial?
Quem tem direito a quais espaços na cidade?
Como a cidade deve ser gerida em relação à política de ocupação urbana?
Como essa situação é percebida no Brasil, onde a regulamentação legal dos condomínios é relativamente nova?
Resenha crpitica do artigo:
MATOS, Lucas. Poder punitivo e produção do espaço: uma leitura de discursos institucionais sobre conflito e controle no centro de Salvador-BA. Revista de Estudos Empíricos em Direito, vol. 6, nº 3, dez 2019, p. 58-80.
O artigo resenhado enfoca e problematiza a produção espacial na cidade de Salvador através do poder punitivo alicerçado em discursos como o de segurança e ordem. O poder punitivo sob análise está centrado em discursos e práticas de entidades de Estado, tais como a Polícia Militar, a Guarda Civil Municipal e a Secretaria de Ordem Pública. Para o autor, esse tipo de poder é um “complexo prático-discursivo” (p. 60) que mobiliza (e é demandado) por discursos e instituições (como os mencionados acima) e legítima intervenções sócio-espaciais que, no caso de Salvador, são enquadradas em um cenário histórico de gestão urbana caracterizada pelo “controle social racializado”, a “policização do espaço da cidade” e a “razão neoliberal” (DARDOT; LAVAL, 2016) (p. 61). Para compreender melhor as relações de controle no centro da cidade o autor toma mão do conceito de ilegalismos (TELLES, 2010), observando assim a noção de ilícitos para além de binarismos (p. 60). Enfim, é valorizada uma “articulação da criminologia com o urbano” (p. 61), com foco na gestão da segurança e dos espaços (p. 60-62).
A proposta metodológica da pesquisa foi calcada na observação exploratória das dinâmicas de atuação de órgãos de controle no Centro de Salvador, de forma que foram tomadas notas para compor um diário da investigação. Foram realizadas entrevistas com o Chefe do Grupo de Apoio ao Turista (unidade da Guarda Municipal no Centro), o Comandante da unidade da Polícia Militar responsável pelo Centro, o Inspetor Geral da Guarda Civil Municipal, a Secretária de Ordem Pública de Salvador e o Presidente da Associação dos Dirigentes do Mercado Imobiliário de Salvador (ADEMI). Essas entrevistas não foram analisadas pelo seu mérito, mas sim pela busca de fragmentos de discursos institucionais em suas falas (p. 62-63). Cabe destacar que, embora o autor tenha optado pela utilização de questionário não rígido, poderia ter contribuído para a compreensão de determinados aspectos do argumento a disponibilização das questões centrais abordadas nas entrevistas. Entende-se, no entanto, que a referida ausência pode ser justificada pela falta de espaço para tal material no corpo do texto.
Na seção “Configuração urbana e desigualdade em Salvador-BA: pecados no “paraíso racial”” o autor busca demonstrar brevemente a constituição histórica de Salvador como uma “cidade rebelde” (GARCIA, 2009, p. 133). A profunda segregação e exclusão social associada a aspectos sociorraciais é apresentada em oposição a percepção de uma suposta harmonia histórica na cidade. Pelo contrário, diversas formas de resistência negra foram observadas: “quilombos urbanos, terreiros de candomblé, rebeliões escravas; além da micropolítica, processos de resistência cotidiana à dominação e ao controle, na permanente tensão da negociação e do conflito entre escravos urbanos e senhores (SILVA, 1989)” (p. 63). Essas lutas estavam associadas aos usos do espaço e ainda hoje estão presentes na disputa pelo território, como é o caso dos movimentos sociais de luta por moradia. A amplitude do processo de diferenciação social entre negros e brancos podem ser vistos ainda hoje nos dados relativos ao mercado de trabalho na cidade de Salvador (p. 62-65).
Na seção intitulada “Observações de pesquisa: conflito, controle e produção de espaço no centro da cidade” o autor apresenta suas análises teórica e empíricas a respeito da temática proposta. O centro da cidade é retratado como um local de disputas, que resiste as tentativas de branqueamento, como é, por exemplo, a proposta de “retorno ao centro abandonado” pelas elites locais com financiamento público. A reconquista do Centro com base no discurso da cidade empreendedora alimenta a afirmação do “uso correto do espaço urbano” o que demanda, obviamente, uma atuação seletiva da Guarda Municipal, como observou o autor a partir de denúncias de militantes de direitos humanos. (p. 65-73)
A atuação dos agentes de segurança é pautada por garantir espaços agradáveis, uma vez que a desordem e a violência são tidos como grandes obstáculos para a região se tornar empreendedora e competitiva. Nas palavras da secretária “Sem a ordem cada um faz a sua lei” (p. 70). Nessa seção são explicadas as estratégias que a Secretaria utilizou para, em nome da cultura, garantir a ordem sem, no entanto, (supostamente) interferir na cultura. No intuito de demonstrar como o órgão de governo adotou medida de repressão distintas para grupos de classe média e popular negra o autor narra a experiência de duas festas distintas em bairros distintos, sendo que a do grupo popular sofre uma desconstrução, perdendo seus caracteres originais e passando a se adequar a um ideal de evento ordenado, organizado (p. 65-73). Essa abordagem dos dois bairros é bastante produtiva para a compreensão do texto, no entanto, cabe o destaque de que o recorte empírico da presente pesquisa é o centro da cidade. (p. 65-73)
Outro aspecto interessante da regulação espacial em Salvador é apresentada pelo autor através do processo de homogeneização dos espaços. Por esse processo o turista pode usufruir da comida local sem que tenha que se expor a determinadas questões. Esse ambiente é garantido pela atuação do Estado, como se pode observar no processo de ordenação e formalização dos ambulantes nessa cidade baiana. Esses trabalhadores, já altamente precarizados, tiveram a oportunidade de se regularizar e assim se tornar micro-empresários. A dinâmica de precarização relacionada às condições de trabalho instáveis pode ser entendida no âmbito do precariado como “uma classe em formação” (STANDING, 2014, p. 11). Cabe uma reflexão sobre a medida em que a lógica da cidade empreendedora se espalha (ou incorpora) na visão de mundo dos trabalhadores e governantes. O processo de formalização, no entanto, não inclui todos aqueles que o desejam. Na cidade são criadas zonas em que atuam apenas aqueles já licenciados, sob pena de fiscalização e submetidos a vigilância constante. Em outros lugares, no entanto, os informais seguem trabalhando normalmente. Ocorre, assim, um processo de seleção do espaço de acordo com o grau de formalização do trabalhador e das práticas sociais e espaciais aceitáveis, o que também poderia ser analisado sob a óptica da presença de jurisdições sintéticas e orgânicas (FORD, 1999). (p. 73-77).
A questão do consumo de drogas também é bastante presente na região do Centro e um significativo processo de estereotipização que associa droga (crack) e crime. Esse nexo é fortalecido por campanhas publicitárias que intensificam uma abordagem bastante terrível do problema. Esse processo aumenta a violência institucional na medida em que favorece a criminalização de determinados indivíduos (pessoas em situação de rua, por exemplo). De acordo com relato o de um entrevistado obtido pelo autor “as famílias negras são as que mais sofrem com a violência cotidiana no Centro, mas relacionou diretamente o problema com a movimentação cultural e política dos negros – especialmente no Centro Histórico – que, segundo ele, tem que parar de fomentar “esse discurso que odeia brancos e policial” (p. 77). Um dado interessante destacado pela pesquisa do autor é a de que “os agentes da ordem percebem a tensão entre questões sociais e tratamento punitivo, mesmo que o discurso não se afaste do paradigma punitivo, muito ligado à consolidação de estereótipos e modulado pelo racismo institucional” (p. 77). (p. 73-77)
Nas considerações finais o autor destaca que partiu da questão criminal para pensar a cidade, o que permite, por exemplo, observar como as agências de controle atuam na produção e reprodução de dinâmicas sócio-espaciais em virtude de seu e discurso e ação estruturalmente seletiva. Assim, “os processos de criminalização são orientados pelo embaralhamento discursivo entre desordem sócio-espacial e criminalidade, o que produz, por sua vez, a potencialização das agências de controle punitivo como agentes da configuração territorial” (p. 77). O controle social punitivo, pelo emprego da violência institucional, acentua os processos de privatização e segregação urbana. Enfim, para o autor “o poder punitivo é muito mais um dispositivo de gestão do que de repressão” (p. 78). (p. 77-78)
Referências:
DARDOT, P.; LAVAL, C. A Nova Razão do Mundo: ensaio sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
FORD, R. T. Law`s territory (A history of jurisdiction). Michigan Law Review, p. 843–930, 1999.
GARCIA, A. Desigualdades raciais e segregação urbana em antigas capitais: Salvador, cidade D’Oxum e Rio de Janeiro, cidade de Ogum. Rio de Janeiro: Faperj. Laville, 2009.
SILVA, E. Entre zumbi e pai João, o escravo que negocia. In: Reis, J; Silva, E. (Orgs.). Negociação e conflito: A resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
STANDING, G. O precariado: a nova classe perigosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
TELLES, V. A cidade nas fronteiras do legal e ilegal. Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2010.
- 24 de nov. de 2019

O Grupo de Pesquisa Direito e Sociedade convida a todos a participarem da nossa reunião aberta, que será realizada no dia 27/11/2019, quarta-feira, na sala 02 da Faculdade de Direito da UFRGS.
Além da integração, é uma ótima oportunidade para que, aqueles interessados no processo seletivo, conheçam o funcionamento do grupo, as pesquisas em andamento e esclareçam eventuais dúvidas acerca da seleção de novos integrantes.
A reunião será no horário normal dos encontros do grupo: das 11:30 às 13h.
Contamos com a sua presença!