Resenha crítica: O recurso de corporações ao sistema de justiça - jogadores habituais, direito e mudança social
- GPDS
- 7 de jan. de 2021
- 7 min de leitura
Atualizado: 11 de abr.
Resenha crítica do artigo:
IPSEN, Annabel. Repeat players, the law, and social change: redefining the boundaries of environmental and labor governance through preemptive and authoritarian legality. Law & Society Review, v. 54, n. 1, p. 201-232, mar. 2020.
Mateus Cavalcante de França
Annabel Ipsen é professora de sociologia na Colorado University, interessando-se em pesquisar desenvolvimento internacional e local, sistemas agroalimentares, sociologia ambiental, economia política e gênero, concentrando-se nas relações entre lugar e investimentos locais e internacionais a partir da análise de como as políticas espaciais e produtivas afetam modos de governança e desenvolvimento de comunidades locais (IPSEN, 2020). Em seu artigo “Repeat players, the law, and social change: redefining the boundaries of environmental and labor governance through preemptive and authoritarian legality”, publicado em 2020 na Law & Society Review, a autora analisa como o direito é ativado nas relações que estuda.
No artigo, Ipsen busca responder a três perguntas de pesquisa: 1) Quando ou em que circunstâncias corporações voltam-se ao direito para institucionalizar seu direito de operar conforme seus critérios?; 2) Que vantagens e desvantagens governos locais e corporações têm ao se oporem nesses processos? e 3) Como o contexto sociopolítico e o tipo de sistema jurídico afeta a habilidade de uma parte em promover ou impedir mudança social? (p. 202). Para aprofundar a discussão, a autora conecta três literaturas dos estudos sociojurídicos: jogos habituais (repeat playing), endogenia jurídica (legal endogeneity) e adversarialismo jurídico (legal adversarialism) (p. 202-203). Além disso, ela conduziu dois estudos de caso, em locais estratégicos para o desenvolvimento da indústria de milho geneticamente modificado (GM) para o mercado consumidor dos Estados Unidos, mas ambos em sistemas jurídicos sensivelmente diversos: Havaí (Estados Unidos) e Arica (Chile) (p. 203).
A literatura sobre jogos habituais parte de um texto de Marc Galanter (1974) em que o autor percebe que mesmo em sistemas jurídicos justos, ocorrem resultados desiguais na prática, sobretudo entre aqueles que litigam com uma frequência – jogadores habituais (repeat players) – e os que não – jogadores eventuais (one-shotters) –, sendo possível, por meio da habitualidade, aprender como melhor operar o sistema de justiça a seu favor, e mesmo perceber as circunstâncias em que a litigância pode trazer resultados mais desejados. Ipsen (p. 205) também cita pesquisas feitas por John Szmer, Susan W. Johnson e Tammy A. Sarver (2007) e John Szmer, Donald Songer e Jennifer Bowie (2016), mostrando que também há desigualdades entre jogadores eventuais, havendo mais sucesso em litígios para agentes com maiores recursos, advogados de maior qualidade e equipes jurídicas mais numerosas. A autora propõe-se a agregar a essa literatura com sua pesquisa, oferecendo indícios de como essas desigualdades podem ocorrer em litígios envolvendo órgãos governamentais e grandes corporações.
Por sua vez, a literatura sobre endogenia jurídica é levantada a partir das observações de Lauren Edelman (2016), segundo quem organizações econômicas aproveitam-se contradições do direito, moldando o ambiente jurídico por meio de práticas que mimetizam a juridicidade formal, também influenciando-a nesse processo. Ipsen (p. 206) também menciona as pesquisas de Shauhin Talesh (2009, 2014), que mostra como corporações atuam de modo a influenciar a atividade legislativa a seu favor em casos de direitos do consumidor, provocando, nesse sentido, uma tendência à endogenia jurídica. A autora contribui com essa literatura mostrando como corporações baseiam suas estratégias de litigância no ordenamento jurídico vigente e como esses mecanismos acabam por moldar o direito.
Por fim, para discutir o adversarialismo jurídico, a autora refere-se ao termo utilizado por Robert Kagan (2001) para descrever o sistema jurídico estadunidense, em muitos casos caracterizado como conflituoso, imprevisível, punitivo e custoso para as partes (p. 207). Ipsen propõe-se a avançar no debate iniciado por Kagan, analisando como o sistema jurídico e o contexto social importam para determinar as vantagens de jogadores habituais em um litígio.
Em seguida, a autora explana o comportamento jurídico de corporações, em especial as de sementes geneticamente modificadas. Ele pode se manifestar por atividades de modelagem (shaping activities) dos direitos locais, normalmente empregadas quando uma corporação firma-se em um determinado lugar: em primeiro lugar, a empresa “torna-se” local, empregando moradores e adaptando-se ao modo de vida do lugar; em segundo, elas desenvolvem relações cooperativas com as comunidades locais, assumindo postos de liderança em agências estratégicas (como as de regulação de recursos naturais); por fim, as corporações inserem-se no panorama político local, por meio de lobbying e doações a campanhas de determinados candidatos (p. 208). Contudo, quando as atividades dessas corporações encontram-se ameaçadas, elas utilizam o que a autora chama de legalismo estratégico (strategic legalism): a litigância (ou a ameaça dela) para garantir a manutenção das atividades empresariais, recurso para o qual o fato de ser um jogador habitual é de grande importância (p. 209).
O legalismo estratégico pode adotar diferentes formas, conforme o contexto local e o sistema jurídico vigente. A autora dá dois exemplos, correspondentes aos dois estudos de caso que faz em seu artigo: legalidade preemptiva (preemptive legality) e legalidade autoritária (authoritarian legality) (p. 210). A primeira possibilidade ocorre em sistemas de common law, como nos Estados Unidos, e desenvolve-se por atividades como a busca por um precedente favorável, a apelação a jurisdições superiores para retirar o litígio do nível local e a mudança do debate do conteúdo para a forma (como discussões sobre competências). A segunda ocorre em sistemas de civil law, como no Chile, e desenvolve-se por atividades como a sobrecarga de agentes locais com um grande número de processos judiciais, a ameaça de entrar com ações contra agentes locais para dissuadi-los de ameaçar as atividades da corporação e o recurso a instâncias superiores em busca de interpretações formalistas da legislação.
O estudo de caso no Havaí parte de um conflito originado com o questionamento, por parte de moradores de Kauai, dos riscos à saúde trazidos pelas atividades de produção de milho GM, o que culminou em um projeto de lei limitando a atividade, sobretudo no que diz respeito ao uso de pesticidas (p. 213). Em seguida, iniciou-se uma votação, no Havaí, para colocar um moratório temporário em todos os plantios GM. As empresas, que já empregavam atividades de modelagem, investiram em discursos para provocar a incerteza dos argumentos científicos evocados pela oposição, e contrataram equipes de advogados para processar o governo, abrindo ações contra o condado de Kauai e, após a votação favorável ao moratório em 2014, também contra o condado de Maui (p. 213-214). As empresas evitaram, nos processos, debater a validade de suas atividades, questionando, ao invés disso, que esferas de governo detêm a legitimidade de legislar sobre o controle de pesticidas, levando o debate a instâncias superiores e mais favoráveis às corporações (pela influência de atividades de modelagem como o lobbying), conseguindo vencer o litígio contra os condados, que dispunham de menos recursos e com apenas o apoio de algumas organizações locais (p. 214-215).
O estudo de caso em Arica leva em consideração que o Chile já era marcado por uma legislação neoliberal herdada do governo autoritário de Augusto Pinochet e órgãos reguladores com poucos recursos, o que torna o país convidativo para a presença de corporações multinacionais (p. 216-217). No direito chileno, não existe uma força de precedentes como nos Estados Unidos, apesar de reformas legislativas recentes tenham criado a possibilidade de tribunais superiores revisarem decisões de cortes de outras instâncias, criando formas “quase vinculantes” de precedentes (p. 217). O conflito analisado inicia-se com uma greve de trabalhadores de corporações de produtos agrícolas GM em 2012, o que levou a uma série de ações judiciais contra vários agentes envolvidos, além da ameaça de demissão (p. 218). Quando uma corporação substituiu trabalhadores de Arica antes do convencionado, levando a uma autuação pela inspeção trabalhista, o que culminou em um processo judicial que, chegando na Suprema Corte, foi decidido a favor da empresa pela letra fria da lei, e não por uma perspectiva de direitos adquiridos (p. 219). Outras estratégias da empresa envolveram ações contra uma série de agentes, dotadas de um caráter de ameaça mais do que de resolução de um conflito (p. 219-220).
O estudo dos casos revela que grandes corporações, enquanto jogadores repetitivos, dispõem de um maior poder de litigância do que agentes governamentais locais, visto que esses detêm menos recursos (p. 222). Algumas diferenças entre a atuação das empresas em cada um dos casos dizem respeito sobretudo ao sistema jurídico que serve de contexto (p. 223). Contudo, essas diferenças não, na prática, tão determinantes, visto que as corporações adotam uma postura semelhante em ambos os casos: atividades de modelagem em diferentes esferas e em caso de conflito, a transferência do litígio para o ambiente que lhes for mais favorável, esvaziando o conteúdo político do debate, direcionando-o para questões de teor sobretudo formal (p. 224-225). Em ambos os casos, o direito foi ativado pelas empresas para evitar mudanças sociais (p. 225-226).
A autora, contudo, reconhece a contingência de diferentes esferas de governo: embora sejam ativadas a favor das corporações, as altas instâncias também podem provocar mudanças sociais contrárias aos interesses desses grandes atores, como reformas recentes no Chile demonstram (p. 226). Ipsen (p. 228-229) conclui seu artigo afirmando que seus resultados apontam para a necessidade do fortalecimento de agentes governamentais locais com mais recursos como forma de mudança da endogenia jurídica que favorece interesses de grandes corporações.
Referências:
EDELMAN, Lauren. Working law: courts, corporations, and symbolic civil rights. Chicago: University of Chicago Press, 2016.
GALANTER, Marc. Why the haves come out ahead: speculations on the limits of legal change. Law & Society Review, v. 9, p. 95-160, 1974.
IPSEN, Annabel. Welcome. Disponível em: <https://annabelipsen.com>. Acesso em: 16 dez. 2020.
KAGAN, Robert. Adversarial legalism: the American way of law. Cambridge: Harvard University Press, 2001.
SZMER, John; JOHNSON, Susan W.; SARVER, Tammy A. Does the lawyer matter?: influencing outcomes on the Supreme Court in Canada. Law & Society Review, v. 42, p. 279-304, 2007.
SZMER, John; SONGER, Donald; BOWIE, Jennifer. Party capability and the US Court of Appeals: understanding why the “haves” win. Journal of Law and Courts, v. 4, p. 65-102, 2016.
TALESH, Shauhin. The privatization of public legal rights: how manufactures construct the meanings of consumer law. Law & Society Review, v. 43, p. 527-562, 2009.
______. Institutional and political sources of legislative change: explaining how private organizations influence the form and content of consumer protection legislation. Law & Social Inquiry, v. 39, p. 973-1005, 2014.